Extrapolações

Saturday, June 30, 2007

 
Liturgia
Era cedo de manhã e o jovem sacerdote seguia o seu caminho pela estrada que rasgava a paisagem. Infelizmente para ele, apesar de o sol ainda só ter enviado algumas das suas primeiras dádivas, o sacerdote já ia atrasado. Seguia numa marcha acelerada ao mínimo para não perder a postura nem o início do sacrifício anual ao Deus Clima, não conseguindo evitar tropeçar algumas vezes na túnica branca, altura em que resmungava – Raios partam, só eu é que tenho um galo atrasado!
E nesta coreografia continuou ao encontro do seu parceiro de profissão, à espera numa encruzilhada que interrompia a estrada.
- Que é do carneiro?!
- O carneiro?...
- Vais sacrificar a tua mãe, é?
- O carneiro…
- Sim, o carneiro.
- O galo atrasou-se outra vez, quando acordei já o sol estava meio descoberto e esqueci-me. E agora?
- Devias estar à espera que o Deus Clima o prouvesse… Vá deixa estar, compramos duas rolas pelo caminho.
E continuaram o seu caminho para o lugar do altar, ainda mais apressados, agora com a diferença que também tropeçavam na túnica um do outro e praguejavam alto, silenciando ao redor os pássaros que já labutavam há muito nessa manhã.
A dada altura, cruzam-se com um rebanho de ovelhas.
- Ainda se fossem carneiros…
- Isso arranja-se.
E dirige-se ao pastor.
- Confiscamos-lhe um carneiro.
- Mas eu só tenho ovelhas.
- O que você responderá daqui em diante é que lhe confiscámos um carneiro – e dirige-se à ovelha mais branca que estava nas imediações, agarra-a pela lã, e segue o seu caminho. O outro sacerdote correu até ele - Mas isso é uma ovelha!
- Pois, temos de lhe arranjar uns cornos. Mantém-te atento aos ramos das árvores e dos arbustos que ainda nos safamos à grande. Vá, já estamos quase a chegar.
- E não achas que as pessoas vão reparar?
- Se isto fosse ao Deus Colheitas, claro, mas o Deus Clima é mais para o pessoal da cidade. Eles lá sabem distinguir um carneiro de uma ovelha com dois galhos na cabeça. E não te esqueças que eles mantêm a distância, senão levam com uma trovoada nas ventas. Agora vai àquela oliveira e traz dois ramos.
O sacerdote partiu os dois ramos mais grossos que conseguiu partir com a ajuda do cutelo sacrificial, bastante rombo, e trouxe-os para o segundo sacerdote.
- Vá agora agarra no bicho para eu lhe meter os cornos.
E a ovelha torcia-se irrequieta porque estranhava a tira rasgada da túnica que o sacerdote tentava enrolar-lhe à volta da cabeça.
- Olha que não sei se consegues, a ovelha não parece lá muito contente.
- Qual quê, as ovelhas não pensam, são mais burras que as galinhas
E nisto, dá um apertão definitivo, que espeta uma ponta do pau na carne da ovelha. Aflita, ela foge a correr, com força para levar o jovem sacerdote de arrasto, agarrado pela tira de pano que agora tapava os olhos do pobre animal. Correu até chocar contra uma árvore, a que antes lhe tinha fornecido os cornos, agora sim profundamente cravados.
O animal sangrava e tinha uma pata partida.
- Ui, e agora? – perguntava-se o jovem sacerdote, enquanto se levantava, ainda meio aturdido pela colisão da ovelha.
- Vá não percas tempo que já estamos mais que atrasados. Vai lavar o carneiro ao rio.
O jovem sacerdote só conseguiu murmurar
- A ovelha… vamos ser fulminados.
E em gestos lentos, arrancou os galhos da cabeça ferida do animal. Também teve de rasgar mais um bocado da sua túnica para molhar no ribeiro e lavar as feridas e o sangue que tingiam a lã.
- Assim nunca mais nos despachamos – e empurrou com o pé a ovelha para o ribeiro, que mergulho desamparada - vês, já esta lavada. Pronto, agora leva-a às costas que a minha idade já não permite esforço desses.
E foi assim que os dois sacerdotes seguiram o seu caminho, com o cansaço equivalente de dois dias de trabalho e com as túnicas já só esbranquiçadas, um apoiado no ceptro sagrado, o outro vergado pelo peso quase morto que trazia às costas.
O carneiro molhava as costas do sacerdote e fazia comichão, o que o levava a parar de vez em quando para descolar a túnica da pele. Em cada paragem, o sacerdote mais velho brandia o ceptro e ameaçava de porrada tanto o jovem como a ovelha.

Por fim, o lugar do sacrifício. Passadas as primeiras colunas, são avistados por um dos espectadores.
- Sacerdote, não devia ter chegado um pouco mais cedo.
- Ora essa, homem de pouca fé. Chegamos à hora que temos de chegar. Não me diga que devíamos chegar com antecedência para precaver imprevistos.
- Longe de mim insinuar tal coisa. E o carneiro não vem pelo próprio pé porquê?
- Não sabe que a lei diz que o animal do sacrifício tem de ser perfeito, sem fracturas nem doenças? Eis a garantia, o bicho não teve de mexer uma palha para cá chegar.
- Ahh… Já nem sequer me atrevo a perguntar pelos chifres do carneiro.
- E faz bem. Chifres? Num carneiro?! Agora tenha juízo e vá para o seu assento na plateia.
A plateia já estava cheia do povo da cidade, que conversava baixinho devido à ausência dos sacerdotes que iriam conduzir a cerimónia. Finalmente eles apareceram. O sacerdote jovem, extenuado, dirigiu-se num andar coxo ao altar e lá deixou cair a ovelha com alívio, que mal se mexeu apesar do impacto contra a pedra.
Um assistente trouxe a corda benzida para atar o animal do sacrifício, mas o sacerdote mais velho recusou – deixa estar rapaz, desta vez não vai ser preciso. Este carneiro foi escolhido pelo próprio Deus Clima. Olha para ele, que nem tenta fugir – e o jovem sacerdote murmurava mais uma vez que iriam ser fulminados.
- Povo da cidade, estamos mais uma vez aqui reunidos para mostrar a nossa gratidão ao Deus Clima, oferecendo-lhe o carneiro mais puro do reino pelas tardes de sol em passeio e pelas noites de chuva no teatro.
A plateia respondeu “Assim seja”, e o sacerdote voltou-se para o altar. A ovelha tremia febrilmente, e jorrava-lhe da boca uma espuma branca. Tinha-se constipado pelo caminho.
O sacerdote rezou a um outro deus que não o Clima para que aquilo acabasse rápido. O céu enchia-se de nuvens negras. O sacerdote jovem aproximou-se e, nos modos que mais reverentes que conseguiu, entregou o cutelo sacrificial, pegajoso e sujo de verde com a seiva da oliveira.
O sacerdote elevou o cutelo no ar, quando a ovelha inspirou em dois ou três tempos uma enorme quantidade de ar, ao que seguiu um espirro que a fez rebolar e cair do altar de encontro ao chão de pedras salientes que circundavam o lugar do sacrifício. Ensanguentada, suada, com a boca coberta de espuma, totalmente morta.
O jovem murmurou pela última vez "vamos ser fulminados" e o sacerdote mais velho inspirou resignado.
Um grande trovão caiu do céu, dividiu-se em dois e fulminou os sacerdotes.

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