Extrapolações

Monday, April 24, 2006

 
Ordinal
A aldeia estava devastada. Tudo partido, tudo queimado, tudo desfeito em poucos longos minutos de violência, coisa estranha àquele canto da terra. O aço, que só era conhecido como útil para a lavoura, fora manuseada pelos invasores de uma forma nunca antes vista por aquele povo. Nunca tinham experimentado o medo da espada, e muito menos assistido à morte pela espada. E o choque não passava. Nem tinham nenhuma espécie de força que os empurrasse a assistir os feridos, ou procurar as crianças desaparecidas. E enterrar os cadáveres… mais do que um de uma vez… o que era isso?

Os seus olhos pareciam ter levado um banho de descolorante. Tudo a preto e branco, devagar. Era impossível ao jovem pastor de ovelhas sair da apatia induzida pelo cenário de destruição. Caminhava lentamente, porque os joelhos não tinham força, de pescoço esticado para a frente de incredulidade. Não sabia o que era aquilo. Não sabia o que sentir. Não estava preparado para esta intromissão.

Porque será que lhe chamou intromissão? Ninguém sabe. O certo é que esqueceu-se da sua primeira reacção – “que desastre…” – porque onde há intrusão, houve um intruso. E então começou a pensar no intruso. Porque é que ele teria feito aquilo? Quem seria, afinal? E contemplava a sua aldeia. E voltava a carregar no intruso. De onde teria vindo? “Nós nunca lhe fizemos mal…Mas porque é que ele teria feito aquilo?” Ouve-se o murmúrio de um velho, que consegue balbuciar qualquer coisa por entre a tosse. Como era ele capaz de fazer aquilo?! Mas porque raio foi ele fazer aquilo?! Os joelhos sentiram o refluxo do sangue, que agora bombeava com mais força, e estugou o passo. “A minha família?”

Correu, alheio a tudo. Não via mais nada que não o túnel de visibilidade que o guiava até casa. E contudo ouviu uma voz. Travou, e olhou em redor à procura. Era uma menina, uma menina quase mulher, sentada de encosto a um muro de pedras cheias de arestas. Aquela a quem mais tomava atenção quando se distraía dos discursos do ancião da aldeia. Ali desprovida de qualquer graça, sozinha e ferida. Tinha falado poucas vezes com ela, conhecia-a mal, e no entanto, pela primeira vez desde que tinha voltado à aldeia, chorou. Abraçou-a, perguntou o que lhe tinha acontecido, se estava bem, se queria alguma coisa… mas ela estava demasiado alucinada pelos acontecimentos recentes. Conseguiu pedir água e desmaiou.

“Só isso?... Não soubeste retribuir qualquer coisa mais pela minha simpatia? Eu vim logo a correr mal te vi… Não é justo, os intrusos eram injustos, e não havia justificação para o que tinham feito. Porque é que eles o tinham feito?! De onde vieram? Mas porquê?... Não é justo… Devem pagar. Deve ser feita justiça. Eu tenho razão, eu fui injustiçado, eu farei justiça, e ela está comigo. Persigo-os e faço-os pagar.” E o jovem pastor saiu a correr da aldeia, armado com o cajado e a fisga, guiado pelo rasto que os cavalos pesados dos intrusos deixaram na erva das colinas verdes.

Não sabia que perseguia o Senhor dos Dez, e a sua guarda pessoal dos Dez. Foram apenas dez soldados, dez homens, que devastaram uma aldeia com a sua centena de habitantes. Segundo se dizia, o Senhor dos Dez tinha sob o seu controlo os dez melhores combatentes de toda a terra conhecida pelos homens. Era impossível alguém vencê-los pela qualidade. Apenas um exército enorme poderia vencer a sua superioridade, pela destreza nas artes do combate e da guerra.
Cada um tinha o seu número. O número um era o melhor guerreiro da terra, o número dez era o décimo melhor guerreiro da terra. Frequentemente lutavam entre si para actualizar o seu posto. A recruta de novos membros era pouco frequente. Só acontecia quando o número dez era derrotado. Nesses casos, o carrasco do número dez era reverentemente convidado pelo Senhor dos Dez para se juntar à sua guarda pessoal. O convite era feito a sós, e ninguém sabia o que era dito nesses momentos raros. Os únicos em que o Senhor partilhava a sua intimidade com alguém, exceptuando o mordomo.
E era assim que este grupo vivia, alimentado pelo produto das pilhagens e pela certeza de serem os melhores. Chegava-lhes.
Hoje continuavam o seu caminho vagante, tranquilos, vindos de uma aldeia onde tinham feito escala. Um dos cavalos sobressaltou-se. Também os cavalos eram os dez melhores de toda a terra. O Senhor olhou para trás. Viu ao longe uma figura que se aproximava na sua direcção, a correr, a pé. Um pirralho tomado pela loucura. Será que ele pensa poder desafiar a minha guarda pessoal? Nem vale pena deixá-lo aproximar-se. Não é digno da minha proximidade. E ordenou ao mordomo “envia o número dez”. O mordomo atrasou-se dez cavalos na fila indiana para dirigir-se ao súbdito eleito. Ele inverteu a marcha e cavalgou em direcção o miúdo. Aproximou-se, desmontou e desembainhou a espada. O rapaz queria vencê-lo com um cajado de pastor… certamente deveria ter algum trunfo por revelar, ou seria assim tão inconsciente?...

O rapaz estacou perante o seu adversário. Tomou o fôlego. Reviu a sua estratégia. Brandir o cajado, eventualmente tentar atingi-lo. Mas manter sempre a mão desperta, para num momento de presunção do adversário, levá-la à sacola e arremessar uma pedrada certeira no centro da testa. Ele conseguiria, era justo que assim fosse.
O soldado ainda retorquiu que mais valia desistir e manter a vida. Se pudesses realmente derrotar-me, estarias no meu lugar. O pastor respondeu por uma bastonada, defendida com um movimento rápido de espada. Repetiram mais algumas vezes. O soldado resolveu contra-atacar. O pastor ainda tentou defender-se com o cajado, mas percebeu que só lhe restava esquivar-se, senão mesmo fugir. Tinha de se afastar daquela lâmina o máximo possível. Tinha de aplicar o trunfo. Então afastou-se a correr, e encarou o adversário. O adversário aproximou-se com passo rápido. O pastor esperou até ao momento certo. Levou a mão atrás das costas. O soldado percebeu que era agora que ele revelava o trunfo. Atirou-se a ele. O pastor agarrou com força num seixo rolado que tinha na sacola, e atirou-o como uma energia que quase lhe fez saltar o braço. O soldado reagiu, com toda a rapidez que conseguiu, aflito. Deu o seu máximo. Levou braço desocupado à cara, enquanto tentava desviar-se do tiro. Levou com ele no braço, e sentiu-o a estilhaçar. Tudo rápido de mais para se importar com isso. Deu meia volta e lançou a espada contra o miúdo, que ainda estava curvado do arremesso. Ia-o cortando ao meio.

“Não te disse que não valia a pena?...”, enquanto olhava para o corpo separado. Se eu sou o número dez, é porque a soma da minha inteligência, da minha força, da minha rapidez, da minha habilidade, superam qualquer soma de argumentos que alguém queira apresentar contra mim. Os truques já vão incluídos nessa soma. E tu, levezinho e com meia dúzia de calhaus, querias questionar esta lei da natureza? Palerma, onde tinhas a cabeça?... O soldado enumerava a sua lei ao corpo morto, como se ele ouvisse. Na aura de sangue que o envolvia, algo o levou a rever esta constituição que poucas vezes questionava. Nunca tinha necessidade disso. Ela dizia que ele era o décimo melhor de toda a terra, incluído no grupo dos dez melhores. Insuperável.
Relembrou o dia em que entrou para os Dez. Eles tinham atacado a sua cidade. Ele, membro do exército que a defendia, atacou um dos invasores, lutou muito tempo com ele, e venceu. Ao aperceber-se disso, um dos outros invasores dominou-o em poucos golpes, e levou para fora da cidade, atado ao cavalo. O momento era importante, justificava a fuga. Um dos dez tinha sido derrotado.
Já longe, o Senhor teve a tal conversa com ele, meio morto, todo esfolado. Ele aceitou.
Aquele miúdo também quis defender a sua cidade. Só que não era um dos dez melhores, e perdeu. Tudo estava no seu lugar, não era? Ainda assim. Havia qualquer coisa naquele cadáver envolvido pelo sangue que o superava, que lhe punha em questão o décimo posto.

Os membros raquíticos, superavam os músculos torneados; o cajado de madeira esculpida, mais reverente que a espada forjada do aço; os farrapos vestidos, mais simbióticos do que a cota de malha que envergava; a cara, ainda que juvenilmente indefinida, suja de vermelho escuro e mil vezes mais bela.
O número dez queria aquilo. Enquanto soldado, fugira sempre daquele retrato que agora lhe roubara a lucidez e o remetia à contemplação, inerte. Há já muito tempo que o seu pensamento não se desviava de voltar a ser o número nove. Em cada refeição, em cada momento de descanso, em cada treino, em cada golpe, em cada vida ceifada, tudo tinha em vista e contribuía para um dia subir no seu posto. Agora, não. Agora, para ali estava sem pressa em sair do pasmo. Será que ainda havia esperança para ele? O Senhor dos Dez tinha conseguido afastá-lo deste tipo de pensamentos. O que é certo é que esta limitação lhe tinha oferecido a vitória a cada combate, até mesmo sobre este novo objecto de fixação que tivera o azar de se atravessar no caminho.

“Não é justo que eu tinha sido assim limitado, sem saber ao que ia. Que se lixe o posto.”
Assestou uma flecha ao Senhor do Dez e deixou-a ir. O número um agarrou a seta, à frente da testa do seu Senhor. O Senhor dos Dez endureceu a cara, e ordenou ao mordomo “envia o número nove”.

Wednesday, April 12, 2006

 
Queda
O dia tinha sido longo. Não que fosse mais longo do que os outros, os outros também tinham sido igualmente longos. E no entanto, a repetição nunca os encolheu. Os dias passavam invariavelmente longos.
No pensamento, trazia um dia que tinha passado mais depressa. Algures em meados de Janeiro. O patrão deixou-o sair mais cedo, chegou a casa e encontrou a mulher a fechar a porta à chave, do lado de fora. Ela disse-lhe “Anda comigo, preciso de ajuda para carregar os sacos. Vamos aos saldos.”. Nesse dia viram as montras e entravam, quando não se deixavam assustar pela opulência das etiquetas dos preços. O rei ia nú, mas nunca se atreveram a confessar que os preços estavam caros, mesmo a cinquenta por cento de desconto. Paravam, olhavam inexpressivos, partiam para a montra ao lado. Conheciam-se bem, não era preciso dizer aquilo que ambos já sabiam, nem sentiam nenhum gosto particular em materializar esse saber comum.
A meta era bem clara, adquirir as roupinhas que vestiriam o embrião que grassava no ventre de sua mulher. Mas houve uma loja em que a mulher lhe ordenou que experimentasse um conjunto. Relutante, deixou. Tal não foi a surpresa com o suplemento de aparência conferido pelo tecido caro. A mulher também embasbacou, mas não demorou a tomar conta dos acontecimentos. Riu com escárnio e disse-lhe que nunca iriam poder comprar um fato daqueles. Ele olhou-se mais um pouco ao espelho e dirigiu-se à cabine para se despir. A mulher esclareceu o empregado que aquela roupa não era despesa para a sua carteira. E seguiram para casa.
Ultimamente, este foi um dia que se distinguiu dos outros por ter passado mais depressa. “Dava-me jeito um dia destes, hoje caía mesmo bem”, pensou ele. E nesta esperança, ganhou alguns segundos no trajecto que o afastou do emprego em direcção ao lar.
O lar… a casa, a bem dizer. Uma casa plena de danos colaterais causados pelo pequeno grande guerrilheiro que se instalara há poucos meses, e o seu poder ameaçava crescer, a um ritmo semelhante ao crescimento dos membros e da dentição. Roupa suja, louça por lavar, desarrumação reinante a poluir o visual do pequeno T1. E no sofá, a mulher de semblante atordoado, com os olhos em súplica por algo que lhe aliviasse a dor. “Nem mesmo hoje, que desejei particularmente ardentemente que o dia passasse rápido? Será que o garoto não se cala?!”.
As coisas não iam bem entre os dois, mas inevitavelmente mantinham anseios enleados numa aliança bilateral imperceptível contra o berreiro. “Já não sei o que fazer. Tenta tu calá-lo.”. E ele olhou fixamente para o alvo. Cerrou os olhos com decisão. Havia um “basta” que lhe explodia o peito. “Acabou-se a brincadeira”, e dirigiu-se para o berço onde a criatura, da qual se sentia separada pelos decibéis, mas que era afinal de contas, o seu filho.
Ainda teve de desviar dois ou três esperneares antes de o conseguir segurar. Já seguro nas mão, encostou-o ao peito, e comprimiu-o com alguma força. E então discursou, com o cinismo mais terno que alguma vez aconteceu, na realidade e na ficção.“Vá meu c…..zinho, chiu… vamos a calar… ou juro que te rebento os c….s de encontro àquela parede… vá meu filhinho, há tantos dias que não nos dás um tempinho de descanso… a tua mãe está a dar em doida… se tenho de aturar aquela v… mais uma semana inteira, não sei o que faço… a mim ou a ela… por isso cala-te… se te portares bem esta noite, ainda pode ser que tenha sorte com a p… da tua mãe… salvas-me o dia?”.
O bebé sorriu, a sua cara estava feliz. Ele depositou-o de volta no berço, devagarinho, com a respiração presa por um fio. E concluida a missão com sucesso, dirigiu-se ao sofá, onde a sua esposa constava, de olhar vazio. Sentindo a proximidade do seu homem, despertou, estranha ao silêncio, à situação totalmente invertida. Olhou para ele, vitorioso e vagamente sorridente. Finalmente tinham conseguido calá-lo. Ela sim, sorriu sem contenção possível por um momento. Mas de novo, como em todas as vezes, voltou a si mesma, e tomou as rédeas. Compôs a cara mais ordinária que conseguiu, e disse qualquer coisa parecida com “Mai iró”, qualquer coisa que tinha visto num filme ou numa série qualquer.
Nessa noite, o bebé adoromeceu sereno, embalado pelos gemidos paternos.

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