Extrapolações

Saturday, August 04, 2007

 
A mulher
Nesta aldeia as coisas correm ao seu ritmo. Um ritmo que serve a todos, umas vezes mais, outras vezes menos, nunca a todos ao mesmo tempo, isso é certo, mas digamos assim, a passagem de ano costuma ser sempre bem encarada e as resoluções são formuladas e cumpridas sem grandes angústias.
Contudo, digamos assim, também, que isto não se verifica na totalidade. Mas lá chegaremos.
Esta aldeia tem uma vida multifacetada e tenta acompanhar os progressos da civilização e da tecnologia. A sua companhia de teatro atrai pessoas de outros lugares, o seu porto fluvial abastece toda a vizinhança, e na semana passada um agricultor local adquiriu o primeiro tractor da região.
A cerca de um quilómetro do porto, rente aos limites dos penhascos, há uma casa de madeira de telhado baixo adornada com objectos cor-de-rosa. Penas tingidas e flores, principalmente.
Os valores da família e do trabalho são prezados nesta nossa aldeia. O sonho de uma mãe é ter um filho abastado o suficiente para sustentar uma família, o sonho de um pai é ter um filho respeitado pelos outros e com autoridade para educar os filhos.
O sonho de um filho era o sucesso, o reconhecimento, a família. Mas não só.

Naquele dia, havia festa. Do último barco a aportar, chegou uma encomenda especial. Um tractor, o primeiro da região. O motor da aquisição foi um jovem agricultor, pessoa empreendedora e com visão, que conseguiu convencer o chefe da aldeia a subsidiar esta compra, e ainda a reunir os outros agricultores em cooperativa para dividir o encargo financeiro. Naquele dia, o jovem agricultor foi herói e foi notável da cidade. E sem grandes oficialidades reuniu-se uma grande farra em sua honra no bar mais próximo. Serviam-se rodadas e cantava-se hinos aos melhores bebedores, alternados com hinos ao herói do dia.

Vestiu um dos seus vestidos de decote na medida ideal da sua feminilidade e que arrojavam no chão de tal forma que lhe suavizam a intermitência dos passos até à levitação. Sobre isto nada se sabe. Ninguém supõe sequer que aquela criatura se vista. Já sobre a forma como ela remove a roupa, a cada mente, uma nova teoria.
Enfim, cabelo volumoso, lábios pintados, maquilhagem perfeita, pronta para mais uma vez.
Parou um pouco para ouvir o som das ondas. Estava calmo, o mar, e o vento estava morno, agradável. Inspirou e seguiu em direcção ao barulho.
Sim, ela levitava. Os passos eram imperceptíveis. Ela ia descalça. O chapéu tapava-lhe a cara até ao queixo, e o cabelo esvoaçava perfeitamente despenteado. Aquele espírito vagava decidido e inabalável.

A sua entrada nas vielas mais periféricas da aldeia, e depois nas ruas principais, causavam uma reacção muito própria nos habitantes. Os mais velhos desviavam o olhar, porque passavam-se anos e anos de impotência sem perceber o que aquela mulher representava, qual era sua importância no funcionamento da vida da aldeia.
Os miúdos mais novos tentavam com ardor não denunciar a sua vontade de simplesmente fixar o olhar nela até que desaparecesse na próxima esquina. Viam horas em relógios que não tinham, procuravam no chão coisas que não tinham perdido, iniciavam conversas pela segunda vez nesse dia. Mas mal ela se adiantava na sua posição relativa, apenas contemplavam, até que algum se lembrava de perguntar se será que era ela.
Não haviam meninas na rua àquelas horas.
Ela conhecia bem a cidade, percorreu-a sem deter-se uma única vez até chegar ao bar que libertava o barulho que a chamou e guiou. Parou pela primeira vez no seu caminho defronte do edifício, como se estivesse a tirar-lhe as medidas, quiçá a preparar a entrada e a saída.
Tirou o chapéu e inclinou a cabeça para trás de modo a que o cabelo escorresse, deixando-lhe o rosto a descoberto num único movimento suave e espectacular. Ao mesmo tempo, subiu os degraus e abriu a porta com uma mão. Uma reacção em cadeia engoliu todo o estrépito no salão, desde a porta ao balcão. Suspeita-se que ao mesmo tempo se tenha aberto uma vereda imperceptível desde a mulher até ao herói do dia, uma vereda que só ela sabia ler. E terá sido por essa vereda que flutuou até ele. Agarrou-o pelo braço de modo a baixar-lhe altura do ombro esquerdo para lhe segredar qualquer coisa. Depois deixou deslizar a mão, do braço até ao pulso, e seguiram para fora do bar de mãos dadas, e do bar para fora da aldeia, até a sua casa de enfeites rosa à beira dos penhascos.
Ninguém os impediu de seguirem o seu caminho nem lhes pediu satisfações. Nem amigos, nem pais, nem a noiva do jovem agricultor.

Na tarde do dia seguinte, o jovem agricultor regressa da casa à beira dos penhascos ainda atónito . Na sua mente resta alguma disponibilidade para perguntar coisas que se resumem a tentar perceber se daquela mulher recebeu sexo ou poder.
Primeiro vai ter com a sua noiva, que o abraça com urgência, depois com a sua família, que lhe oferece a melhor refeição possível de preparar em pouco tempo, e passados dois dias, com os seu amigos que não lhe fizeram uma única pergunta sobre aquela mulher.

Ninguém sabe ao certo quem ela é ou o que a leva periodicamente a sair do seu ninho para confiscar os homens notáveis da aldeia e oferecer-se-lhes como recompensa. Julga-se que a sua senda terá começado quando ela foi a única sobrevivente a uma doença que vitimou todas as meninas da sua idade e sua mãe viúva.
Ninguém sabe quando acabará. Todos acham que esta mulher não pensa no assunto.

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