Extrapolações

Wednesday, February 08, 2006

 

A batalha I

A Batalha I
Ele estava na primeira fila, na linha da frente do exército com as suas cores. Uma multidão de seres grandes e musculados, que usualmente falavam entre si com vozes poderosas. Mas o tom de voz não era o habitual. Porque normalmente, era ela a sua única arma na refrega da sobreposição de uma piada mais jocosa acima da algaraviada reinante numa tasca lá do sítio. Hoje conversavam pouco. Estavam preocupados com o que os esperava. Os menos corajosos confessavam expectativas; os mais corajosos demoliam as expectativas dos menos corajosos para lhes levantar o ânimo. Todos sabiam que deixar cair o moral do grupo era condenar a acutilância da ofensiva a um destino rombo. Infelizmente, a análise dos menos corajosos só conseguia baixar o moral, até porque percebiam que ela estava em baixo, e como tal, em baixo permanecia. Longe iam os vamos esmagá-los de há algumas horas atrás. Bastou o primeiro vislumbre das fileiras adversárias para perceber que a batalha aconteceria, o sangue correria, as amputações separariam os seus corpos, os vivos morreriam e os mortos não voltariam. Foi o rastilho acendido nas suas mentes, cada vez mais dinamitadas por uma inaudita imaginação pirómana.
Mas ele não parecia ficar muito afectado com a disposição dos companheiros deste último mês. Os seus dezassete anos não lhe permitiam as mesmas preocupações. Não havia cônjuge nem filhos, não havia um lar construído ao longo de gerações. A questão da soberania não se punha, aquela não era a sua terra, nem sequer o seu mundo, de onde tinha sido puxado para aquele lugar, por ciência e artes mágicas que para já desconhecia. Apenas a possibilidade de extrema dor física o assustava. De resto, e vendo bem as coisas, aquele dia era o concretizar de um sonho. Um sonho feito à sua medida e lhe servia quase na perfeição. Quase, faltava qualquer coisa, mas tudo o resto estava no seu lugar. Tudo o animava na perspectiva de completar um quadro pintado ao longo de dezassete anos de fantasias, antes impossíveis, e agora inevitáveis.
No meio dos gigantes, ele era o ágil, o rapidinho franzino a quem os Quase-Vikings dedicavam alguma paternalidade. Tanto o protegiam quase ternamente, porque eram maiores e mais fortes, como o exaltavam porque não tinham a sua agilidade. Por vezes diziam mesmo que esperavam algo grande dele. Os filhos dos guerreiros é que não gostavam muito desta relação. A eles só lhes davam protecção por serem mais pequenos. Não podiam participar nos treinos para a preparação do presente dia, e por isso detestavam a criatura franzina que tinha vindo do nada para lhes fazer inveja.
Na sua mão direita segurava uma espada feita à sua medida, inspirada nas dos samurais por seu pedido. Na lâmina junto ao copo, figurava uma inscrição, um conjunto de pequenas runas cujo significado desconhecia mas que embelezavam a espada para além do que a sua fantasia inicial atingia.
No corpo levava vestido o que trazia no saco de treino, no dia em que ao percorrer o habitual trajecto pavilhão casa, foi levado para aquela terra embrutecida que o fazia sentir-se pequeno. Pequeno, mas poderoso por levar a vantagem de uma indústria têxtil infinitamente mais avançada. Os seus pés calçavam as sapatilhas de jogar, aquelas super confortáveis achadas a um canto menos provável da loja de desporto. Aquelas que mais do que compradas, foram adoptadas e ganharam o afecto do seu portador. A simbiose entre o cuidado e ausência de futeboladas, e o conforto e aderência ganhava definitivamente contornos pouco próprios de uma relação apenas semi-orgânica. Vestia uns calções escuros, de cor indefinida pelo extenso historial de lavagens e secagens ao sol, fofos como uma festa só um poucochinho subversora. No tronco levava a camisola fina, de mangas arregaçadas à maneira das pessoas de trabalho. E nos olhos, as duas lascas de silicone salvadoras, descobertas a um canto de uma bolsa da mochila: um par de lentes de contacto por estrear.
E entre as coisas que o animavam e as coisas que o assustavam, havia um que balançava indecisa sobre que lado escolher. A perspectiva de morrer era uma categoria inclassificável até ao momento. Se lhe lembrava o mais que certo sofrimento que o levaria até ao desfalecimento, assustava-o. Se lhe lembrava a suprema glória e a derradeira radicalidade que findar a vida na refrega trazia, animava-o. Por vezes tentava conjugar as duas, porque a dor do corpo antes de sucumbir magnificaria a glória do martírio. Depois apercebia-se que dentro de pouco tempo seria atormentado por todas as suas terminações nervosas em grito misericórdia, o que o remetia a um silêncio de alma responsável pela sensação de saltos no tempo, em direcção ao estrépito das armas e das vozes que se avizinhava.





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