Extrapolações

Thursday, February 23, 2006

 
A Batalha II
De dentro da mancha escura faiscavam periodicamente uns brilhozinhos solares. Eram os olhos confiantes dos Pássaros. Aquelas criaturas maiores do que um homem alto, avolumadas pelo casaco escuro de pêlo, não o confessavam a ninguém, mas sabiam que iam passar um bom bocado. Não serão as poses estáticas a denunciar o prazer da certeza de um futuro breve com os músculos distendidos e contraídos ao máximo; as garras poderiam por fim entrar licitamente na carne de seres capazes de se defender e contra-atacar; o animal teria a permissão para entrar com os ambos os pés e ficar por um bocado. E embora aquelas caras pontiagudas continuassem impávidas, a pele revoltava-se de adrenalina, abafada pelos casacos daquela penugem espessa. Abafada, mas não totalmente, porque o tremido das dermes excitadas gerava um barulho parecido com o do dançar das árvores nas florestas assombradas.
O quadro do exército era a média das duas emoções reinantes: a dos que queriam na totalidade, e a dos que não queriam, pelo menos até que chegasse o primeiro silvo de armas brancas em colisão. A partir daí, todos querem. Mas antes, a batalha é coisa que mete respeito até aos elementos das hostes dos Pássaros.
Longe ia ponto no espaço e no tempo em que a facção mais agressiva passou a ter uma razão para se sentir legitimamente descontente. Antes, a soberania dos Pássaros era incontestável, e as questiúnculas (que realmente o eram) preocupadas das aves mais irritadas podiam ser diminuidas com apelos sucessivos ao bom senso. Quando algo potencialmente preocupante finalmente aconteceu, os arautos costumeiros da desgraça sentiram que era a sua vez. E se antes quase tinham conseguido, a legitimidade dar-lhes-ia a razão há muito ansiada. O músculo da retórica estava cristalizado em elevada forma, exercitado pelas sucessivas tentativas. A preserverança compensaria.
Pelo contrário, as aves mais moderadas paralisaram de perplexidade perante o novo estado de coisas. Não sabiam o que dizer, como ripostar. A afronta tinha realmente acontecido, e não fora pequena. Impotentes, pediam pateticamente por uma calma em que era impossível acreditarem. E perante as reivindicações de bom senso, agora a desempenhar um papel inédito, não demoraram em mandar o correio com a promessa de guerra contra o povo que protegia o transgressor.
Exemplar de uma jovem ave, da facção mais irritada
Foi o culminar das aves mais irritadas. A partir daí desceram de novo à sua imagem escarninha habitual, com os mais novos a tenderem para a insignificância com garganta inflamada. E nesta decadência, as aves mais moderadas iniciaram a escalada até à postura de outrora. Foi inesperado. Não se sabe o que incendiou nas aves mais nobres a velha chama. Talvez a responsabilidade de organizar o exército, talvez o saborear dos dias antes da morte provável, talvez a excitação sentida da melhor forma pelo bom bocado que distava cada vez menos. Fosse o que fosse, estava relacionado com o regresso do aço das armas às mãos em calejamento progressivo. No fundo, tudo o que era determinante naquele povo resumia-se ao teor bélico presente nas mãos. As aves moderadas usavam armas forjadas do ferro fundido. A sua combatividade era a soma do corpo e do engenho do povo das aves. A espada era na guerra, a representação diplomática dos ferreiros, mineiros e suas companheiras, que não sendo capazes de participar em combate, eram tão fundamentais como qualquer guerreiro que ajudavam a armar.
As aves mais irritadas eram diferentes. Não usavam armas de aço. O seu lado bélico era vivido com tal intensidade que proclamavam os métodos dos antepassados mais distantes. Na mão esquerda, rasgavam das pontas dos dedos umas prolongações pontiagudas, parecidas com unhas, que nas aves mais velhas tomavam dimensões aterradoras. Na mão direita, empunhavam uma arma parecida com um escudo, que tanto servia para atacar como para defender. Esta peça era feita com os dedos e a pele e os ossos dos antepassados, que como que lenhificavam numa resistência que aumentava com o passar dos anos. Os moderados sempre condenaram esta prática, embora não soubessem explicar porquê. Agora já não tinha interesse. No dia da batalha estariam todos do mesmo lado.





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