Extrapolações

Wednesday, April 12, 2006

 
Queda
O dia tinha sido longo. Não que fosse mais longo do que os outros, os outros também tinham sido igualmente longos. E no entanto, a repetição nunca os encolheu. Os dias passavam invariavelmente longos.
No pensamento, trazia um dia que tinha passado mais depressa. Algures em meados de Janeiro. O patrão deixou-o sair mais cedo, chegou a casa e encontrou a mulher a fechar a porta à chave, do lado de fora. Ela disse-lhe “Anda comigo, preciso de ajuda para carregar os sacos. Vamos aos saldos.”. Nesse dia viram as montras e entravam, quando não se deixavam assustar pela opulência das etiquetas dos preços. O rei ia nú, mas nunca se atreveram a confessar que os preços estavam caros, mesmo a cinquenta por cento de desconto. Paravam, olhavam inexpressivos, partiam para a montra ao lado. Conheciam-se bem, não era preciso dizer aquilo que ambos já sabiam, nem sentiam nenhum gosto particular em materializar esse saber comum.
A meta era bem clara, adquirir as roupinhas que vestiriam o embrião que grassava no ventre de sua mulher. Mas houve uma loja em que a mulher lhe ordenou que experimentasse um conjunto. Relutante, deixou. Tal não foi a surpresa com o suplemento de aparência conferido pelo tecido caro. A mulher também embasbacou, mas não demorou a tomar conta dos acontecimentos. Riu com escárnio e disse-lhe que nunca iriam poder comprar um fato daqueles. Ele olhou-se mais um pouco ao espelho e dirigiu-se à cabine para se despir. A mulher esclareceu o empregado que aquela roupa não era despesa para a sua carteira. E seguiram para casa.
Ultimamente, este foi um dia que se distinguiu dos outros por ter passado mais depressa. “Dava-me jeito um dia destes, hoje caía mesmo bem”, pensou ele. E nesta esperança, ganhou alguns segundos no trajecto que o afastou do emprego em direcção ao lar.
O lar… a casa, a bem dizer. Uma casa plena de danos colaterais causados pelo pequeno grande guerrilheiro que se instalara há poucos meses, e o seu poder ameaçava crescer, a um ritmo semelhante ao crescimento dos membros e da dentição. Roupa suja, louça por lavar, desarrumação reinante a poluir o visual do pequeno T1. E no sofá, a mulher de semblante atordoado, com os olhos em súplica por algo que lhe aliviasse a dor. “Nem mesmo hoje, que desejei particularmente ardentemente que o dia passasse rápido? Será que o garoto não se cala?!”.
As coisas não iam bem entre os dois, mas inevitavelmente mantinham anseios enleados numa aliança bilateral imperceptível contra o berreiro. “Já não sei o que fazer. Tenta tu calá-lo.”. E ele olhou fixamente para o alvo. Cerrou os olhos com decisão. Havia um “basta” que lhe explodia o peito. “Acabou-se a brincadeira”, e dirigiu-se para o berço onde a criatura, da qual se sentia separada pelos decibéis, mas que era afinal de contas, o seu filho.
Ainda teve de desviar dois ou três esperneares antes de o conseguir segurar. Já seguro nas mão, encostou-o ao peito, e comprimiu-o com alguma força. E então discursou, com o cinismo mais terno que alguma vez aconteceu, na realidade e na ficção.“Vá meu c…..zinho, chiu… vamos a calar… ou juro que te rebento os c….s de encontro àquela parede… vá meu filhinho, há tantos dias que não nos dás um tempinho de descanso… a tua mãe está a dar em doida… se tenho de aturar aquela v… mais uma semana inteira, não sei o que faço… a mim ou a ela… por isso cala-te… se te portares bem esta noite, ainda pode ser que tenha sorte com a p… da tua mãe… salvas-me o dia?”.
O bebé sorriu, a sua cara estava feliz. Ele depositou-o de volta no berço, devagarinho, com a respiração presa por um fio. E concluida a missão com sucesso, dirigiu-se ao sofá, onde a sua esposa constava, de olhar vazio. Sentindo a proximidade do seu homem, despertou, estranha ao silêncio, à situação totalmente invertida. Olhou para ele, vitorioso e vagamente sorridente. Finalmente tinham conseguido calá-lo. Ela sim, sorriu sem contenção possível por um momento. Mas de novo, como em todas as vezes, voltou a si mesma, e tomou as rédeas. Compôs a cara mais ordinária que conseguiu, e disse qualquer coisa parecida com “Mai iró”, qualquer coisa que tinha visto num filme ou numa série qualquer.
Nessa noite, o bebé adoromeceu sereno, embalado pelos gemidos paternos.





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